A vida toda ouvimos que cães são animais de matilha, programados geneticamente para viver em grupo, respeitar hierarquia e seguir um líder. Então, porque de uns tempos para cá, nós da LordCão temos recebido tantas mensagens e telefonemas de donos desesperados por causa de brigas entre seus cães? Machos, fêmeas, até filhotes da mesma casa resolveram não viver mais em harmonia, e estão deixando seus donos preocupados e sem ação. O que pode estar acontecendo? O que pode estar levando nossos cães a se odiarem? O objetivo deste LordCão News é discutir algumas destas questões, e propor medidas para tentar trazer a paz de volta a nossos lares.
Bem, se antigamente não víamos tantas brigas, a primeira pergunta é: o que mudou, digamos, nos últimos 15 anos? Muita coisa. O mercado pet é um dos que mais cresce em todo o mundo, e aqui no Brasil houve uma verdadeira explosão. Temos mais produtos, mais serviços, mais facilidades, e obviamente mais pets.
Isso nos leva ao primeiro ponto a ser observado: as pessoas hoje têm mais cães. Não só quem já tinha tem maior número, como quem não tinha passou a ter. Muitos dos motivos que levavam as pessoas a não terem cães não existem mais. Hoje temos rações completas a preços acessíveis; passeadores, treinadores, babás, hotéis e creches para cães; banhos e tosas em casa ou na pet shop com “delivery”; veterinários em casa e clínicas 24 horas. Ou seja, muito mais facilidade para se manter o peludo saudável e feliz mesmo se tendo pouco tempo para ele.
Chegamos à segunda mudança: menos tempo. Acho que ninguém discorda que nossa vida hoje é bem mais corrida do que há 10 anos, e que o tempo que temos para dedicar a nossos peludos muitas vezes é menor. Neste pouco tempo, queremos carinhos, chamegos e brincadeiras com eles. Isso nos leva ao…
Ponto três: menos disciplina e menos exercícios. Quem tem tempo para aulinhas de obediência? Quem tem tempo para longas caminhadas diárias, ou para andar de bicicleta ou para ir a um parque jogar bolinha com o cachorro por horas? O que mais ouço de donos é: ”mas eu trabalho duro o dia todo, quero chegar em casa e somente relaxar com meus cachorros!”
Por fim, pelo menos para quem vive nos grandes centros: nossas casas estão cada vez menores e temos muito mais apartamentos, ou seja, os cães têm menos espaço e ao mesmo tempo estão muito mais próximos de nós do que antigamente. Hoje são nossos bebês que dormem no quarto, e não mais os “vigias” da casa que moram no quintal. São tratados como membros da família, com direito a todos os mimos, e não como ajudantes ou ferramentas de trabalho que só precisam ser mantidos saudáveis.
Resumindo: mais cães, menos tempo, menos espaço, menos disciplina, menos exercícios, mais carinho e mais proximidade dos humanos.
Agora vamos guardar estas informações para o futuro e mudar nossa atenção para: quem são nossos cães.
Cães em seu estado natural (os raros canídeos selvagens ou semi-selvagens) são animais de matilha, mas muito mais por necessidade do que por escolha. Um cão sozinho é fraco, não caça boas presas e fica vulnerável a predadores/agressores. Na natureza cães precisam uns dos outros para sobreviver, eles caçam em grupo e protegem uns aos outros. Quando há uma briga séria, o perdedor se submete ao líder, vai embora ou morre. Ou seja, eles vivem cansados, com pouca comida, precisam se proteger e só têm a companhia uns dos outros.
Agora voltemos aos nossos cães. Apesar da genética ser semelhante aos daí de cima, eles: têm proteção e comida a vontade e de graça, uma cama gostosa onde podem dormir o dia todo, e um dono que lhes dá atenção e carinho sem exigir nada em troca. Nem fazer o trabalho para o qual sua raça foi selecionada ele precisa mais! É só relaxar e aproveitar a vida.
Convenhamos … quem vai querer dividir isso com alguém?! Porquê?!? O mais natural é querer guardar esta vida valiosa só para si, sem dividir com ninguém.
Nós tiramos de nossos cães a necessidade de viver com outros cães, nós mostramos a eles que a vida de “filho canino único” entre humanos pode ser muito boa, muito melhor do viver entre cães, mesmo que o preço seja passar algumas horas sozinho às vezes. Ou seja, eles continuam animais de matilha, mas nós os ensinamos a apreciar a matilha humana…
Só para exemplificar o quanto nossas atitudes e modo de vida mudaram o comportamento dos cães; nossos cães hoje olham nos olhos das pessoas para tentar entender o que queremos, enquanto nos selvagens, olhar nos olhos é visto como desafio e provoca uma briga. Nossos cães viram a barriga para cima cheios de alegria para ganhar carinho porquê é gostoso, enquanto os selvagens só viram a barriga em sinal de submissão, e nessa hora não estão nada alegres. Nossos cães gostam de carinho e até beijos na cabeça, enquanto nos selvagens colocar a boca ou a mão/pata em cima da cabeça do outro é uma grande demonstração de , dominância.
Vejam bem, eu acho tudo isso ótimo, e adoraria que todos os cães do mundo tivessem um bom lar e donos amorosos por toda a vida, mas o que temos que entender é que tudo isso tem impacto na forma de ser dos cães e uma das conseqüências deste impacto é uma atitude de extrema submissão em relação aos humanos aliada a uma extrema dominância em relação a outros cães, afinal, de aliados, os outros cães passaram a competidores.
Ok, já estou vendo um monte de gente pulando: ”Peraí, meu cachorro adora brincar com outros cães!”. Claro, ele está se divertindo, se exercitando, brincando e relembrando como é ser cachorro. Não está dividindo os recursos (comida, espaço e proteção) nem a atenção dos donos. Ele sabe que voltará para casa sozinho com você, então pode relaxar a aproveitar o momento.
Outro leitor pulando: ”Eu tenho 4 cães que se amam, nunca brigam e fazem tudo juntos”. Que bom! Eu também já tive J. Isso nos relembra que cada cão é um cão, e muitos gostam muito de outros cães e vivem felizes (graças a Deus!) com 2, 3 ou mais companheiros na mesma casa. Mas estes não são a maioria, nem o foco deste artigo. Nosso objetivo aqui é entender porquê cada vez mais cães brigam em casa.
É claro que existem detalhes, variáveis e questões de manejo que interferem na harmonia ou não de uma casa com vários cães, mas este assunto já foi abordado pela Claudia em nosso LordCão News n.9 (www.lordcao.com/lcn009.htm), então não vou repetir, mas recomendo a leitura para completar a questão.
A esta altura, você já está pensado: “tá bom, entendi tudo isso, mas então o que fazer para Rex e Fritz pelo menos se tolerarem?”
1. Corpo e mente ativos.
Estudos mostram que os cães selvagens percorrem em média 20km por dia, podendo chegar ao dobro disso em épocas de pouca caça. Fazem várias tentativas e testam diferentes estratégias até finalmente conseguirem comida. Ou seja, exercitam corpo e mente diariamente. Não, não estou pedindo para soltar um coelho do jardim e deixar seus peludos se virarem (que idéia… pobre coelhinho), mas temos que estimulá-los de outras formas. Para quem mora em apartamento ou tem pouco espaço, passeios duas vezes por dia, de meia a uma hora, dependendo do tamanho dos cachorros, em passo acelerado (para eles) são um bom começo. Em casos extremos, pode-se usar uma bicicleta (devagar!), ou até ensiná-los a nos puxar de skate ou patins (os huskies e pits adoram!). O objetivo é cansá-los, desestressá-los e fortalecer o sentimento de matilha, então nada de ficar parando para cheirar o chão e fazer xixi em todos os objetos verticais do caminho. Eles podem fazer uns xixis no início, uns no meio e outros no final, mas só quando você parar e disser que pode (lembre-se que temos que reforçar a sua liderança). Se os cães já brigam, e chegaram ao ponto de não se conseguir levá-los para passear juntos, que saiam várias pessoas, até que se consiga ir aproximando os encrenqueiros.
Quando a situação não é tão grave, (brigas acontecem, mas os cães podem ficar juntos), ou mesmo para evitar que venham a se desentender, pode-se fazer qualquer exercício que faça uma associação positiva entre eles. Ou seja, Rex aprende que nadar e brincar na piscina acontece na companhia de Fritz, correr na praia e jogar bola também, então, Fritz = diversão e Rex passa a gostar mais de Fritz. Para idéias de como exercitar seu cão, sugiro a leitura de nosso LordCão News n.34 (www.lordcao.com/lcn034.htm).
Exercitado o corpo, temos que pensar na mente e para isso temos desde exercícios básicos de obediência, até esportes caninos e brincadeiras como procurar brinquedos e/ou pessoas escondidas, ou tirar petiscos de dentro de bolas feitas para este fim. Existem brinquedos onde se pode botar uma refeição inteira dentro e o cão tem que descobrir como tirá-la de lá. Use a imaginação e se divirta com seus peludos!
2. Manter o mínimo de ordem e obediência em casa, e ter atitude de líder.
Embora muita gente ainda resista à idéia, é fato que cães precisam de disciplina e liderança, e não somente de amor e carinho. Infelizmente eles não se auto-disciplinam nem auto-educam, eles precisam que alguém faça isso para eles, e esse alguém é você. Eles têm que achar que nós, donos, somos o máximo, os poderosos, o “Ó do Bobó”, quase Deus! Controlamos a comida, sabemos exatamente o que pode e o que não pode, decidimos a hora dos passeios e de todas as atividades da matilha e impomos as regras disso tudo, enfim, somos sábios, fortes e seguros e sabemos o que é melhor para todos (se você não acredita nisso, finja!). Na cabecinha deles, respeito = admiração = amor = nada de brigas. Isso não quer dizer que você precisa manter sua casa como um quartel, muito pelo contrário, a disciplina deve ser imposta de forma positiva, alegre e amorosa, mas … sem exceções, com constância e clareza. Todos os habitantes humanos da casa devem decidir e concordar com as regras, e todos devem mostrar aos cães segurança e tranqüilidade quanto a elas. Se os membros da família quebram as regras, mostram aos cães que os humanos são inconstantes e indecisos, o respeito e a admiração são perdidos, abre-se a porta para eles se acharem no direito de disputar a hierarquia, e voltamos ao mundo das brigas. Ah, e um detalhe, o Rex não vai lhe amar mais por quê você quebra as regras quando ninguém está olhando, pelo contrário, ele passará a lhe considerar inconstante e fraco. Lembre-se, para os cães, a base para o amor é o respeito, e quem respeita alguém inconstante e fraco?
3. Castrar machos e fêmeas.
Os hormônios sexuais, como diz o nome, são relativos à reprodução. Reprodução para os cães é necessidade, sobrevivência da espécie, e não prazer. Consequentemente, machos intactos vão brigar para decidir quem cruzará e fêmeas no cio também. Mais uma vez voltamos aos selvagens; lá, o perdedor se submete, vai embora, ou morre. Na nossa casa, separamos a briga (não há vencedor nem perdedor) e prendemos um na cozinha e o outro na varanda (ninguém pode ir embora). Fora isso, na natureza os vencedores efetivamente cruzam, enquanto em nossas casas ganhando a briga ou não eles ficam cheios de hormônios e frustrados, pois ninguém cruza, afinal, que dono quer 8 filhotinhos a cada 6 meses !
Então, não é muito mais confortável para eles serem castrados e não pensarem mais no assunto? Muitos não sabem, mas machos castrados que querem cruzar, cruzam (eu já tive dois), então quando eles não cruzam, não é porquê não conseguem, não há frustração, há somente falta de vontade. O que é melhor, viver frustrado 12 anos para cruzar uma vez ou outra por quê o dono acha bacana, ou não pensar mais no assunto? Falaremos mais sobre castração em um outro post.
Nos cães de raça, a raça também influi, afinal, os impulsos de cada raça foram selecionados por nós por muitas gerações, e ainda estão presentes em nossos cães de companhia. Infelizmente é inviável falar de cada raça, mas é importante que na hora da escolher um cão, e sobretudo mais de um cão, isto seja levado em consideração. É bem mais provável que você consiga ter 6 Beagles ou 6 Pugs que se dêem bem do que 2 Bullteriers ou Jack Russels do mesmo sexo!
Tomadas todas estas medidas, teremos a melhor chance de conseguir harmonia entre nossos cães, e um sentimento de matilha respeitoso e duradouro. Infelizmente às vezes os temperamentos dos cães envolvidos são incompatíveis, e a convivência não será possível. Outras vezes, nós humanos criamos situações tão extremas e irreais, que também não é possível haver harmonia (não dá para ter 10 cães intactos num terreno de 300m2 e querer que sejam amigos!).
Para terminar, temos que lembrar que cães são cães. Não adianta falar, explicar nem argumentar, e nossas regras morais não valem nada para eles (não, ele não acha errado matar o irmãozinho…). Temos que ser donos responsáveis, fazer o que é preciso, e dar a eles condições de viver saudáveis, felizes e em harmonia. Da mesma forma, temos que ter a humildade de reconhecer que certas situações são insolúveis, e que não importa o quanto queremos ter 4 ou 5 cães em casa, se eles forem incompatíveis entre si, não vão se entender e ponto, eles não se importam com o que queremos ou não. Para um cão que vive tenso e querendo brigar o tempo todo, mais vale ser recolocado em uma casa em que seja filho único, onde poderá ter uma vida feliz e relaxada, na companhia de humanos. A separação é dolorosa? Claro, mas a longo prazo, ele será mais feliz e todos viverão em segurança. Manter cães que brigam seriamente na mesma casa, separados permanentemente, é estressante e arriscado. Os cães acabam não tendo a boa vida que teriam se estivessem sozinhos, e se um dia há uma falha humana e um portão é aberto … o preço pode ser muito, muito alto.
Mas felizmente a maioria dos casos é manejável. Geralmente, com a dedicação necessária e as medidas que colocamos acima (e em outros textos de nosso site), é possível ter harmonia em casa com sua pequena matilha. Então, se seus peludos estão se olhando feio e arranjando encrenca por qualquer motivo, mãos à obra, seja um bom dono, um líder forte e harmonize sua matilha!
Daniela Prado
LordCão Treinamento de Cães
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